sábado, 25 de dezembro de 2010

Anaxímenes e Anaximandra

Anaxímenes de Mileto, filho de Eurístrates, saltava à corda durante a noite, interrompendo fortuitamente o sono. Patrocinou, durante os anos quentes de 510 e 511 a. C., o coração esvoaçante de Anaximandra, com quem passeava na Alameda dos Gerânios, sem que desfrutasse do sucesso avançados encómios.

Imune ao perfume dos gerânios que, julgava Anaxímenes, derrubaria a porta do mais esvoaçante dos corações, Aximandra patrocinava por seu turno, e em sigilo, o coração do famoso artífice da pedra,  Anaximénios.

Anaxímenes e Anaximénios, não obstante a proximidade dos nomes, jamais se cruzaram. Nem sempre os nomes se mostram atenciosos para com as leis da predestinação (que, neste caso, assentam na semelhança dos nomes e são, por isso, puramente arbitrárias: por exemplo, um burro e um búfalo partilham as duas primeiras letras e não se conhecem histórias que explorem o facto).

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

(excerto 3)

(...) Eu sigo pequeno, a mãe silenciosa tem-me pela mão, uns três quatro cinco anos, não sei se mais, parecem as memórias deslocadas da idade. Agora já posso falar do pónei cavalo, Tina. Depois da feira e da praia e da areia, nada de particular em falar da areia, ainda os lábios roxos, Tina. Ainda me canso do teu nome; imagina, sempre Tina, é um exagero. Levas-me pela mão e agarras-me, e o homem debaixo daqueles panos, escondido, que faz ali, assunto secreto, um plano só dele sabido, e as mãos, que figura ele faz. No passeio calçada, que embaraço. E eu em cima do pónei - cavalo, corrige a Tina. À frente a igreja do santo, um deles, o dos pescadores, que jura purgar as madeiras de barco dos males da água: o telhado em madeira, as paredes em madeira, os altares em madeira, os santos em madeira, toda a madeira escolhida para servir na capela do santo. Um deles. O céu azul. Levantou-se o manto espesso da neblina e as rochas como gente fúnebre fogem para dentro do mar e abrigam peixes. As caras antes matinais juram comer o sol que lhes sopra de feição. Mas volto ao pónei cavalo: fotografias expostas revelando o talento das mãos esquiando no ar do fotógrafo, diz-se profissional, Celso Torres, profissional de fotografia, diz assim num cartão; não: um cartaz que encima as fotografias. Ali o menino do Freud, a camisinha branca; logo ao lado, estalando de carne, uma menina ri das rosáceas da mãe segurando-lhe com força de anémona os braços roliços. Ri, marota alegre os braços roliços, parece a mãe amparar-lhe a vontade, e ela segurando-se com a força dos braços roliços da mãe. Ao lado da menina braços roliços amparada por força de anémona, ao lado do menino que teme cavalos póneis e outros que tal, o Henriquinho, invento-lhe agora um nome, para não ser só o que tem medo de e a que é amparada por e etc., espeta um dedo no nariz, o pequeno dedo como que amparando o ranho, cara de fúria, de quem diz Não quero nada disto, não quero nada disto, tirem-me daqui – atrás o pai, braços em cruz, ri, as figuras que os pais fazem. E a Tina ri do meu espanto, do meu espanto do Celso Torres, do meu espanto do pónei cavalo e há uma explosão e fico sem ver e abro muito os olhos. Tina, quase morrias, desgraçada.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

sábado, 4 de dezembro de 2010

Anatomia simplificada de um poema

Cabeça do poema.

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Corpo do poema.

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Pés do poema.

Som homem cabeça porta

O vento entrou silencioso pelo canto da porta, a madeira a ranger meio que rangia, ainda a ouvir-se uma pequena farpa escondida de som, de qualquer som, um pequeno ranger, foi todo o ranger que se ouviu, a entrar devagar, o canto da porta a deixar-se enganar pelo ranger, pelo frio, devagar pela porta, um pequeno som quase inaudível, perto do não som, e o sol a fugir pela frincha, pelo canto, a porta que deixava entrar o ranger que não o ouvia o homem sentado à mesa, a porta e o telhado e o prato perto de mortos, a colher caída, como o som lhe fizesse companhia, as mãos na cabeça e o som, a cozinha, Vem, que não ouço, veio o ranger despertar-me ou nem o sei, dizia, a cabeça a rasar o prato e o ranger, as mãos na cabeça e o ranger a recrudescer, a cozinha e as paredes e os pratos perto da cabeça do homem, homem cabeça, o ranger da porta, o tempo que ela demorou a chegar, devagar, um pé no outro, cuidadoso, a tactear parede rugosa, o ranger da porta que rangia, Vem, que não ouço, Vem, que não te ouço, e veio um ranger ainda maior que o ranger, zuniu furioso a estalar o som, já não perto do não som, mais perto do som que do não som, e o homem de cabeça nas mãos, nos pratos, na cozinha, na mesa da cozinha, as paredes que ela vinha tacteando, as rugas, as farpas, furioso o ranger que invadia a cozinha, o homem as mãos na cabeça os pratos pelo canto da porta, de nada lhe vale porque o vento, o vento que não tem som, o vento assobia nas frinchas, nas arestas, nos cantos da porta, a porta que não estala mas perto, o vento a empurrá-la com fúria, Vem, que o vento, diz, e ela chega, agarra-lhe nas mãos e na cabeça e nos pratos e na mesa da cozinha e olha-o, o homem as mãos na cabeça, na falta de som, ou no excesso de som, o que veio pelo canto da porta, da porta da cozinha, virada ao vento veloz furando mais furioso, um pequeno som inaudível agigantando-se, e todos os sons deixam de ser silêncio, todo e qualquer pequeno bulir já não agulha surda no chão, salto de pulga, agora um vendaval, mais que uma interminável banda momentos antes do espectáculo, momentos antes da melodia, como tudo o que houvesse fosse um grande e único som que não se percebe, tão perto do silêncio como da brutalidade e ela disse assim Vem que o som, o som que vem pela porta, que o som pelo canto da porta não te incomode, homem mãos na cabeça, a cabeça perto do prato, da mesa, da mesa da cozinha.


Vários, Atelier dos sentidos, Chiado Editora, 2010