quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

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Ela fala-me (não sei o que diz, mas este é o som do que diz: fala de Paris, das ruas intermináveis, das montras coloridas, do céu gordo de Paris, da Avenida dos Campos Elísios e da cor da casa: a certa hora do dia a refracção ilumina a prateleira onde expõe as fotografias: o pai sério e carrancudo encostado ao carro, um pneu furado travou o percurso, braços gordos cruzados, calças grandes ao umbigo, o cabelo não aparenta arranjo possível, e a mãe magra e pequenina como um gnomo luta pelos dentes com uma maçã: a maçã ganha: a boca é bem menor: prolonga o braço para o chão como o apontasse: o pó pinta a fotografia e o cabelo raro da mãe esvoaça sem direcção: a porta está aberta e dentro papéis espalhados: 1968: a Françoise empunha a maquineta por detrás da fotografia, o lugar a partir do qual fotografou. Diz: É domingo, saímos para ir ao lago ao piquenique. Acabáramos de montar o pneu suplente – como vês, está ali o pneu furado, encostado sem préstimo ao pneu bom -, e o meu pai não está nada contente porque gosta de ir cedo à pesca, tem a cana no porta-bagagem; não está mesmo nada contente; àquela hora:
o pai:
1. estaria sentado e treslera o jornal;
2. bebera meio xaropezinho;
3. pescara peixe algum e impacientara-se;
4. definira novas estratégias de pesca após consultar outros pescadores;
5. amaldiçoara o lago pela infertilidade;
e a mãe:
1. sentara-se à sombra do toldo branco a vigiar-me;
2. limara e pintara as unhas;
e eu:
1. fotografara o lago;
2. desaprovara a temperatura da água com o dedo do pé;
mas
se o pai:
1. não se sentara nem treslera o jornal;
2. não bebera meio xaropezinho;
3. não pescara peixe algum e nem se impacientara;
4. não definira novas estratégias de pesca após consulta de outros pescadores;
5. não amaldiçoara o lago pela infertilidade;
e a mãe:
1. não se sentara à sombra do toldo branco a vigiar-me;
2. não limara e nem pintara as unhas;
e eu:
1. não fotografara o lago;
2. não desaprovara a temperatura da água com o dedo do pé;
então:
os pais subiram ao monte, levantaram o tijolo à entrada do moinho, apontaram trementes a chave à fechadura, rodaram-na excitados, despiram-se e amaram-se, e a Françoise ficou entregue à madame Marie, a mulher enorme de mãos borbulhonas que os pais da Françoise conhecem há já vinte anos. Está naquela fotografia do lago.)