segunda-feira, 21 de março de 2011

(excerto 5)

Aquela grande casa ficou. Ficou aqui a bater-me na memória. Tia, que casa era aquela? E a tia aparece e explica-me novamente: Aquela era a casa de uma quinta, e desaparece novamente, porque a melodia dela acabou. Ficou-me ainda a mão agarrada a ti, os teus dedos duros, como só ossos, o anel claro e brilhante, grosso, por onde esgotou todo o dinheiro, comprado no ourives, que veio cá a casa e ficou a mostrar-lhe os anéis todos, as pulseiras, lindos colares, grossos, ouro muito fino, abriu a maleta e disse A senhora só tem de escolher, e ficaste a olhar espantada, vejo-o ainda à porta comida pelas pombas, não bem as pombas: pela merda das pombas, abriu o ourives a maleta para deslumbramento da tia, todos os anéis lhe passaram pelos dedos, escolhia um, olhava-o cheio de respeito e depois largava-o cuidadosamente, muito atenta, nem olhava o ourives, fazia tudo como estivesse a mexer no dinheiro dos outros e depois virava lentamente as costas e suspirava, levantava dedo e anel, media-lhe o brilho e perguntava meio à espera de um preço que não poderia pagar: Quanto é? Fechava os olhos do desgosto do preço e o ourives dizia-lhe que não se preocupasse, que pagaria depois, que pagaria por várias vezes, e a tia deslumbrada, cega pelo brilho dos anéis. Só depois de dez visitas, sempre o sorriso safirado do ourives, se decidiu por aquele, um que o ourives apenas trouxe à décima visita, como soubesse desde o início que aquele seria o escolhido. A avó quedava-se também por ali, mais de fantasma que de assunto para tratar: levava o xaile preto e cruzava os braços como dissesse: Eu não percebo nada disso: não percebia mesmo. Sabia apenas o valor do oiro que levava ao pescoço e todas as jóias se diriam comparadas com o fio de oiro: estacava um passo atrás, incomodada com o gasto de dinheiro que dali sairia. Quando o ourives foi embora pela última vez deixou-te uma caixa de veludo que acrescentou valor ao anel: abria-la muito vagarosamente, não desviava nunca o olhar: primeiro espreitavas, depois abrias e confirmavas a permanência do anel, depois mostravas a quem quisesse ver e admirar tão bonito anel: dizias assim: Não é lindo o meu anel, foi o mais lindo que o ourives trouxe, só o escolhi à décima visita, o homem veio cá todos os santos dias com a maleta carregada, e só à décima vez é que eu disse para mim: é este, é este que eu quero, eu sabia por que tinha demorado tanto tempo na escolha, havia um perfeito para mim. Não é lindo, esticavas muito o dedo, favorecias o anel com a exposição ao sol, um gesto altivo de admiração e sorrias percebendo a admiração das pessoas. Esticavas ainda mais o dedo e puxavas ligeiramente a manga da camisola, como fosse coisa que não ajudava ao elogio do anel. Os teus dedos duros, tia, sinto ainda o anel à medida que vamos passando pelas pessoas, tu cumprimentas, dizes boa tarde, e a tua mão e os teus dedos agarram-se aos meus. Que casa é aquela, pergunto de novo (fui buscar-te novamente a memória pelos dedos: estendeu-se ao resto do corpo, à roupa: um casaco ainda de frio, castanho, meio que grosso, daqueles que desconfiam das temperaturas e por isso dão para tudo, uma camisa branca subida ao colarinho e a formar espécie de bordado apertado ao pescoço, e a saia preta, ou quase preta, meias opacas mas a imitar pele, sapatos também pretos para dizer com o preto da saia, os tacões já com salpicos de lama) e tu não me ouviste no meio da pergunta porque só estavas de corpo.

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