quinta-feira, 25 de agosto de 2011

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os pais subiram ao monte, levantaram o tijolo à entrada do moinho, apontaram trementes a chave à fechadura, rodaram-na excitados, despiram-se e amaram-se, e a Françoise ficou entregue à madame Marie, a mulher enorme de mãos borbulhonas que os pais da Françoise conhecem há já vinte anos. Está naquela fotografia do lago. O marido de madame Marie chama-se Jacques Henri e não sabe nadar, o que não lhe trava o impulso da água. Junto ao tanque, no canto da fotografia, podemos vê-lo a ensaiar um salto para o lago. A sombra nos pés de Jacques Henri, que lhe fazem parecer os pés maiores do que o esperado, é musgo. Jacques Henri não gosta daquele musgo porque já nele escorregou duas vezes: na primeira vez, aos dez anos, o pai disse-lhe: Henri, tira o chapéu da cabeça; na segunda vez, Marie, com quem namorava há três meses, gritou-lhe Espera por mim, espera por mim. Nas duas vezes, Jacques Henri dirigiu-se ao médico chinês que lhe disse que não devia saltar de costas para a água e aconselhou chá. O pai da Françoise, antigo campeão de natação, já desafogou Jacques Henri, tendo-lhe dito coisa semelhante. Não recomendou chá. O pai de Françoise, antigo campeão de natação, afogou-se na água da banheira na imprópria manhã fria de um sábado dez de fevereiro de mil novecentos e noventa, no apartamento da Rue Lucien Sampaix, por cima da frutaria do marroquino. O marroquino tirou-o da água e correu a telefonar à ambulância: os seus pés pequeninos marcaram rápidos o soalho de madeira brilhante acabado de lavar, levantou o auscultador e só depois se lembrou que não falava francês nem qualquer outra língua: um bando armado tomou-lhe de assalto a casa infantil numa manhã imprópria de verão no ano de mil novecentos e sessenta – lembra-se como se tivesse sido no dia anterior: a mãe preparava o pequeno-almoço na panela e uma rajada de metralhadora atirou-a para o lume, que começou a borbulhar sangue; fuzilaram o pai e cortaram a língua ao filho; a mais nova escondera-se no telhado, dentro da gaiola dos pássaros, e foi ela quem levou o irmão dali para fora. Nunca mais quer voltar a Marrocos, morrerá fulminado por um relâmpago do céu gordo de Paris, assim o espera. O marroquino largou o telefone e voltou ao quarto de banho, e fez por avisar que ia à rua pedir ajuda. O pai da Françoise não teve acordo possível e, talvez por isso, nunca mais faltou fruta em casa da Françoise. Não tem qualquer fotografia do marroquino. A Françoise odeia-o profundamente porque:




  1. cheira mal;

  2. é incómodo;

  3. não se lembra da terceira razão.


Diz também que a casa nunca mais cheirou bem, como se as paredes vivessem em peste constante, que regurgita a respiração: o cheiro que o marroquino trouxe, acrescenta. À mãe da Françoise não lhe cheira a nada, provavelmente devido à extensão do canal olfactivo (tem um canal olfactivo minúsculo e nada propenso a cheiros pestilentos – isto é uma explicação dela, não muito sério e para dar por acabado o assunto).

2 comentários:

  1. Acho que nem tens noção do bem que escreves. Larga o 1404, ok? Não percas tempo. É só a minha modesta opinião. Podia dizer-te isto já que estás aqui mesmo ao lado, mas estou inspirada pela potência da tua escrita. Já agora, grande header. Quem fez?

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  2. Cara leitora Sara, a trombonista (uma vez trombonista, sempre trombonista), primeira e única leitora do rato cego, estou quase a conseguir que a nobreza da minha cidade de Goldford tenha acesso a brocados bordados a ouro, no 1404, e seria uma pena se isso não acontecesse. Ah, e o cabeçalho é meu, ok?

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